Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto. E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.
Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema IX" Heterónimo de Fernando Pessoa
No entardecer dos dias de Verão, às vezes, Ainda que não haja brisa nenhuma, parece Que passa, um momento, uma leve brisa... Mas as árvores permanecem imóveis Em todas as folhas das suas folhas E os nossos sentidos tiveram uma ilusão, Tiveram a ilusão do que lhes agradaria... Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem! Fôssemos nós como devíamos ser E não haveria em nós necessidade de ilusão ... Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida E nem repararmos para que há sentidos ... Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo Porque a imperfeição é uma cousa, E haver gente que erra é original, E haver gente doente torna o Mundo engraçado. Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos, E deve haver muita cousa Para termos muito que ver e ouvir ...
Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XLI" Heterónimo de Fernando Pessoa
Recomeçar é como renascer e ver o sol em um mundo de liberdade. É crer que a vida se reanima diante de teus olhos fora da escuridão. É saber que toda via tudo pode continuar
Recomeçar é como renascer da sombra de um passado que agora não conta mais. é tornar-se simples, procurando nas pequenas coisas a felicidade. É construir a cada momentoo teu amanha.
Recomeçar é como dizer sim a vida para libertar-se e voar sobre o horizonte além do limite, onde a imaginação não tem medo. É ver tua casa tornar-se grande como o mundo.
Recomeçar é acreditar no amor e sentir que mesmo na dor a alma pode cantar e não conter-se jamais.
Sempre que tiveres dúvidas, ou quando o teu eu te pesar em excesso, experimenta o seguinte recurso: lembra-te do rosto do homem mais pobre e mais desamparado que alguma vez tenhas visto e pergunta-te se o passo que pretendes dar lhe vai ser de alguma utilidade. Poderá ganhar alguma coisa com isso? Fará com que recupere o controlo da sua vida e do seu destino? Por outras palavras, conduzirá à autonomia espiritual e física dos milhões de pessoas que morrem de fome? Verás, então, como as tuas dúvidas e o teu eu se desvanecem.
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, já não separasse. Sagroute, e foste desvendando a espuma, E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até ao fim do mundo, E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo. Quem te sagrou criou-te português. Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Ó SONO! ó noivo pálido Das noites perfumosas, Que um chão de nebulosas Trilhas pela amplidão! Em vez de verdes pâmpanos, Na branca fronte enrolas As lânguidas papoulas, Que agita a viração.
Nas horas solitárias, Em que vagueia a lua, E lava a planta nua Na onda azul do mar, Com um dedo sobre os lábios No vôo silencioso, Vejo-te cauteloso No espaço viajar!
Deus do infeliz, do mísero! Consolação do aflito! Descanso do precito, Que sonha a vida em ti! Quando a cidade tétrica De angústia e dor não geme... É tua mão que espreme A dormideira ali.
Em tua branca túnica Envolves meio mundo... E teu seio fecundo De sonhos e visões, Dos templos aos prostíbulos, Desde o tugúrio ao Paço, Tu lanças lá no espaço Punhados de ilusões!...
Da vide o sumo rúbido, Do hatchiz a essência, O ópio, que a indolência Derrama em nosso ser, Não valem, gênio mágico, Teu seio, onde repousa A placidez da lousa E o gozo de viver...
Ó sono! Unge-me as pálpebras... Entorna o esquecimento Na luz do pensamento Que abrasa o crânio meu. Como o pastor da Arcádia, Que uma ave errante aninha... Minh'alma é uma andorinha... Abre-lhe o seio teu.
Tu, que fechaste as pétalas Do lírio, que pendia, Chorando a luz do dia E os raios do arrebol, Também fecha-me as pálpebras... Sem Ela o que é a vida? Eu sou a flor pendida Que espera a luz do sol.
O leite das eufórbias P'ra mim não é veneno... Ouve-me, ó Deus sereno! Ó Deus consolador! Com teu divino bálsamo Cala-me a ansiedade! Mata-me esta saudade, Apaga-me esta dor.
Mas quando, ao brilho rútilo Do dia deslumbrante, Vires a minha amante Que volve para mim, Então ergue-me súbito... É minha aurora linda... Meu anjo... mais ainda... É minha amante enfim!
Ó sono! Ó Deus noctívago! Doce influência amiga! Gênio que a Grécia antiga Chamava de Morfeu, Ouve!... E se minhas súplicas Em breve realizares... Voto nos teus altares Minha lira de Orfeu!
O que está dentro de mim Está dentro de mim Ninguém arranca Se eu não quiser Ninguém me tira do chão Ou me faz descer das nuvens Se eu não me dispuser A navegar meus rios A contemplar meus desvarios A devastar meus mares A conhecer em mim diferentes lugares Cubro-me de sonhos Ventilados pela poesia Que cintilam no céu da nostalgia Há dissabores e lágrimas Agarrados às minhas saias Também encontro ondas de amor e alegria Percorrendo as minhas praias Não é assim o vai e vem do mar da vida? Escrevo sobre o que salta das minhas areias Atéencontrar a saída
Vivo sentado como um anjo no barbeiro, Empunhando um caneco ornado a caneluras; Hipogástrio e pescoço arcados, um grosseiro Cachimbo o espaço a inflar de tênues urdiduras.
Qual de um velho pombal a cálida esterqueira, Mil sonhos dentro de mim são brandas queimaduras. E o triste coração às vezes é um sobreiro Sangrando de ouro escuro e jovem nas nervuras.
Afogo com cuidado os sonhos, e depois De ter bebido uns trinta ou bem quarenta chopes, Oculto, satisfaço o meu aperto amargo:
Doce como o Senhor do cedro e dos hissopes, Eu mijo para os céus cinzentos, alto e lardo, Com a plena aprovação dos curvos girassóis.