Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!
Florbela Espanca
publicado às 16:06
Eu era a desdenhosa, a indiferente.
Nunca sentira em mim o coração
Bater em violências de paixão,
Como bate no peito à outra gente.
Agora, olhas-me tu altivamente,
Sem sombra de desejo ou de emoção,
Enquanto as asas loiras da ilusão
Abrem dentro de mim ao sol nascente.
Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte;
Como nascida em carinhoso monte,
Toda ela é riso, e é frescura e graça!
Nela refresca a boca um só instante...
Que importa? Se o cansado viandante
Bebe em todas as fontes... quando passas?
publicado às 16:11
Tortura do pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a cidra num momento!
E não se quer pensar! E o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós...
Querer apagar no céu - ó sonho atroz! -
O brilho duma estrela com o vento!
E não se apaga, não... nada se apaga!
Vem sempre rastejando como a vaga...
Vem sempre perguntando: "O que te resta?"
Ah! Não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta!
publicado às 16:07
Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...
A minha Dor é um convento.Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!
Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve...ninguém vê...ninguém...
Florbela de Alma da Conceição Espanca
publicado às 00:35
Poema do amigo aprendiz Quero ser o teu amigo. Nem demais e nem de menos. Nem tão longe e nem tão perto. Na medida mais precisa que eu puder. Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida, Da maneira mais discreta que eu souber. Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar. Sem forçar tua vontade. Sem falar, quando for hora de calar. E sem calar, quando for hora de falar. Nem ausente, nem presente por demais. Simplesmente, calmamente, ser-te paz. É bonito ser amigo, mas confesso é tão difícil aprender! E por isso eu te suplico paciência. Vou encher este teu rosto de lembranças, Dá-me tempo, de acertar nossas distâncias...
Fernando Pessoa
publicado às 00:24
Sinto como imagino que o sol se sente,
o sol buscando os seus atalhos
no interior das horas naturais, nos equilíbrios sem eixo,
sobre as sequências de imagens, errando nas biografias
sem molduras, sobre as silhuetas dos carros,
sem a fadiga de um pequeno abraço ou a mudez
premeditada de um delírio convalescente,
o sol explorando o infinito da superfície vagarosa,
contornando a água de uma lágrima, impalpável
e deslumbrante, silenciosamente no caminho dos versos.
O sol que na aurora apunhala a noite,
O sol que não permite que os céus se colem,
O sol que movimenta as transparências dos homens e mulheres,
O sol que apaga a nitidez dos detalhes inúteis,
O sol que dá corda aos pássaros e aos ruídos,
O sol poético, o sol insone, o sol-ignição-de-todas-as-cores,
O sol eterno, o sol-víbora, o sol que te estranha,
O sol que te ama,
O sol, o sol, o sol...
Tiago Nené
in Instalação
(pré-publicação, a sair em 2009)
publicado às 20:22
Um dia acordo e
o teu beijo
é a neve no olhar
duma gaivota
num voo desigual
de insana rota.
Alexandra Malheiro
publicado às 20:19
Eu: assim começa o poema
Eu vi ontem, sem ir muito longe, um lagarto feliz.
Claro, afirmar que vi um lagarto
e que esse lagarto é feliz são afirmações que,
apesar da sua coerência, parecem
impróprias de mim.
Tudo pode explicar-se razoavelmente
se tomarmos por indubitável a primeira
afirmação, a primeira cer teza:
certamente, ontem vi um lagarto.
Com alguma indulgência, ante mim,
ante o lagarto,
alguém podia crer sem qualquer ciência
na existência de lagartos felizes,
e quanto a isso, não custa nada convencer-se
de que um de nós é o lagarto feliz que vi ontem
dentro da relva,
desde a margem,
sobre o telhado.
Pena que ontem não tive tempo
de sair desta casa sem janelas.
Rosario Pérez Cabaña,
in Mientras Tú Cantas
(tradução de Tiago Nené)
publicado às 20:16
Quem terá deixado esquecida esta música ouvida num canto da rua? Ninguém de quem passa nela repara No entanto - é ela - faltava no dia de chuva No meu dia de chuva? Meu seria decerto este dia pois por mais precário que eu seja nenhuma chuva fora podia cair se acaso em mim não caísse Cai chuva e há música em meu coração Era mera ilusão o dia de chuva.
publicado às 15:15
Naquela tarde quebrada contra o meu ouvido atento eu -soube que a missão das folhas é definir o vento.
publicado às 15:15